terça-feira, 30 de setembro de 2008

Monogamia, Família, Tabus...

Love of one is a barbarism; for it is exercised at the expense of all other. The love of God, too.
Com a descoberta do fato da paternidade o macho da espécie incrementou seu desejo de procriar de um modo que levou os machos alfa a organizar seu meio social ao redor de seus desejos de espalhar suas crias por tantas quantas forem as fêmeas possíveis. Entretanto, isso não parecia justo para os espécimes mais fracos da espécie, assim, os fracos, os feios e aqueles dotados de pouco charme se uniram e decidiram instituir o casamento monogâmico como mecanismo de racionamento, um meio para se garantir que todos (ou quase todos) tenham uma chance de conseguir uma parceira. O resto da história fica por conta da genética. Por que deixar que uns poucos fiquem com toda a diversão se tudo que precisamos fazer é concordar com a limitação de um parceiro por pessoa? É muito mais democrático. Muito mais altruista. Muito mais comunitário! Mas, e se isso vai contra nossa natureza? Então é só inventarmos algumas mentiras (ou mitos, como preferir) que justifiquem tudo isso, e antes que alguém possa dizer “você está falando mesmo sério?” todos já terão esquecido como era nos bons velhos tempos, e engolido a isca.
Para que isso tudo não pareça muito estranho, busquemos referência em Charles Darwin, cuja obra-prima, The Descent of Men, Freud cita em seu Totem and Taboo:
Mais si, remontant le cours du temps assez loin en arrière, nous jugeons les habitudes humaines d'après ce qui existe actuellement, la conclusion paraissant la plus probable est que les hommes ont vécu primitivement en petites sociétés, chaque homme ayant généralement une femme, parfois, s'il était puissant, en possédant plusieurs qu'il défendait jalousement contre tous les autres hommes. Ou bien, sans être un animal social, il n'en a pas moins pu vivre, comme le gorille, avec plusieurs femmes qui n'appartenaient qu'à lui : c'est qu'en effet tous les naturels se ressemblent en ce qu'un seul mâle est visible dans un groupe. Lorsque le jeune mâle a grandi, il entre en lutte avec les autres pour la domination, et c'est le plus fort qui, après avoir tué ou chassé tous ses concurrents, devient le chef de la société. (Dr Savage, dans Boston Journal of Hist., V, 1845-47). Les jeunes mâles, ainsi éliminés et errant d'endroit en endroit, se feront à leur 'tour un devoir, lorsqu'ils auront enfin réussi à trouver une femme, d'empêcher les unions consanguines trop étroites entre membres d'une seule et même famille."
Com a evolução desse sistema, uma das mentiras resultantes era que mulheres e crianças pertencem ao cabeça da família, como sua propriedade, de modo que mulheres não têm direitos. Na verdade, nem mesmo se considerava que mulheres tinham alma. Do mesmo modo, as crianças não têm direitos, e as meninas, assim como as esposas, eram tratadas como propriedade, ao ponto de se manter sua castidade guardada, literalmente, a sete chaves, como analisa Russell:
The history of civilization is mainly a record of the gradual decay of paternal power, which reached its maximum in most civilized countries, just before the beginning of historical records. A father had absolute power over its children, extending in many cases, as in Rome, to life and death. Daughters throughout civilization, and sons in a great many countries, could not marry without their father’s consent, and it was usual for the father to decide whom they should marry. A woman had in no period of her life any independent existence, being subject first to her father and then to her husband. The power which the father acquired in the first instance by this superior strength was reinforced by religion... (Marriage and Morals 18)
Quando se pergunta se as crianças têm o direto de consentir, logo se iniciam as discussões sobre idade de consentimento. Mas não vamos começar a correr antes que estejamos aptos a andar. Primeiramente, vamos falar sobre consentimento. O fato é que o comportamento das crianças lhes são condicionados por expectativas parentais e sociais, impostas coercitivamente sob pena de uso da força e toda uma gama de atos punitivos. Elas são coagidas a adotar o comportamento do adulto. É como se a relutância de uma menina em usar saias, ao invés de calças, ou seu desejo de ficar em casa ao invés de ir à escola simplesmente não existisse. Às crianças é permitido o direito de consentir em apenas um reduzido, e cada vez mais restrito, domínio de opções comportamentais, que são delimitados por aqueles padrões de comportamento que já receberam o selo de padrão de qualidade doméstico pela família e pela sociedade. Desse modo, toda a confusão causada por essa regra de idade de consentimento foi criada como uma ficção para combater os cada vez mais freqüentes casos onde o consentimento, inegavelmente, está presente. Somente quando o comportamento sexual consentido da criança contravém antigos tabus (a razão natural e original dos quais não é compreendida), é que a ficção, coercitivamente imposta, é deliberadamente confundida com a realidade.
O irônico em todo esse papo de idade de consentimento é que somente quando deixamos de tratar as crianças como propriedade, quando deixamos de impor nossos próprios entraves sexuais e outras neuroses, tais como a necessidade de posse e controle, somente então estaremos respeitando-as e respeitando seus direitos como indivíduos sencientes. Será que estamos dispostos a respeitar o direito das crianças em consentir livremente? Se estivéssemos, deixaríamos de projetar nossa neurose da vergonha sobre elas, deixando de constrange-las a cobrir seus belos corpos. Deixaríamos de fazer com que vejam seus órgãos genitais como órgãos de vergonha, de culpa e de sujeira (ao invés de órgãos de beleza, orgulho, saúde e prazer sagrado) impedindo-os de tocar seus próprios corpos, ou os de seus companheiros, conforme sua curiosidade sexual inevitavelmente os leva a fazer.
Mas é claro que tudo isso iria minar as bases sólidas da sociedade patriarcal, monogâmica, negadora do sexo, e as da estrutura nuclear da família, que não passa de um solo fértil para todas essas nefastas neuroses, ou deturpações do normal. Somente porque estamos preocupados com a perpetuação do que é e tem sido considerado normal é que nós pisamos nos direitos das crianças de serem criadas num ambiente onde o sexo é visto de uma maneira positiva e saudável, livre da culpa e da vergonha do que é belo e que vem naturalmente a elas.
Ainda não chegou o momento para que essa mudança se torne possível. Tudo bem. Mas não fiquemos fingindo estar preocupados com os direitos das crianças e, por tudo que é sagrado, deixemos de insistir na farsa de que é por conta de sua inabilidade para ingressar num relacionamento consensual informado que as crianças são “protegidas” da intimidade, seja ela intergeneracional ou não. Isso é um insulto à inteligência das crianças. Ele ou ela sabe muito bem o que quer ou não quer. O que a sociedade deseja e, na realidade, tem interesse, é na perpetuação de sua insustentável disfunção que dá origem aos tabus que atuam contrariamente aos direitos das crianças.
É essa a mesma sociedade em que as meninas começam a apresentar sinais da puberdade na pré-adolescência, e não podem responder devidamente aos sinais que seus hormônios lhes enviam, porque, por um lado, a sociedade em que vivem não lhes garante a independência financeira para tanto, e, por outro lado, seus pais não as permite aquele direito. Não é de se estranhar que elas todas enfrentem tantos problemas nessa idade. Problemas que nada mais são que a externalização das tensões que sentem quando são divididas entre seus sinais hormonais, e a inabilidade de agir em conformidade com tais sinais. O rosto cheio de espinhas da adolescente é um icone da feia e vergonhosa face da sociedade que não consegue lidar com sua sexualidade.
Eis aqui uma outras formas de dizer a mesma coisa, conforme Nietzsche:
Tudo isto significa a palavra Dioniso: não conheço nenhuma simbologia mais elevada do que a simbologia grega, a simbologia das dionisíacas. Nela o instinto mais profundo da vida, o instinto de futuro da vida, de eternidade da vida, é sentido religiosamente - o caminho mesmo até a vida, a procriação, enquanto o caminho sagrado... Somente o cristianismo, com seu ressentimento contra a vida por fundamento, fez da sexualidade algo impuro: ele lançou lama sobre o começo, sobre o pressuposto de nossa vida...
O cristianismo perverteu a Eros, este não morreu, mas degenerou-se. tornou-se vicio.
Uma espécie inteira do mais malévolo "idealismo" – que, de resto, ocorre também nos homens, por exemplo em Henrik Ibsen, essa típica e velha solteirona – tem como objectivo envenenar a boa consciência, a natureza no amor sexual...
E, para não deixar qualquer dúvida acerca da minha disposição, tão honesta quanto severa nesta consideração, quero ainda notificar uma proposição extraída do meu código moral contra o vício: sob o nome de vício, combato toda a espécie de antinatureza ou, se se gostar de palavras bonitas, o idealismo. Eis a proposição: "A pregação da castidade é uma incitação pública à antinatureza. Todo o desprezo do amor sexual, toda a sua adulteração mediante o conceito de 'impuro', é o próprio crime contra a vida – é o pecado autêntico contra o espírito santo da vida."
Os pais, muitas vezes inconscientemente, fazem de seus filhos algo semelhante a eles e a isto dão o nome de educação. Nenhuma mãe duvida, no fundo de seu coração, que o filho que trouxe ao mundo seja de sua propriedade, nenhum pai precisa o direito de impor-lhe suas concepções e seus juízos de valor. Em outros tempos se considerava como um direito dos pais a disposição da vida ou da morte do recém-nascido (como exemplo poder-se-ia citar o caso dos antigos germanos) e o educador, a classe social, o sacerdote, o soberano, e ainda o pai, vêem em cada novo ser humano a oportunidade de se apropriar sem mais de um novo objeto.
Como todos os limites por idade, mais até que muitas outras delimitações etárias que têm efeitos específicos, restritos e diretamente mensuráveis, a idade de consentimento e todos os seus corolários irão desaparecer completamente tão logo ficar demonstrada que não têm qualquer razão de existir, além de ser um efeito colateral lógico do status de não-humanos atribuído atualmente às crianças.
É verdade, não pretendo negar, que algumas atividades podem ser perigosas para o corpo pequeno e leve das crianças. O perigo, entretanto, não é conferido pelo número: um adulto de dimensões similares (e existem adultos assim) estão sujeitos ao mesmo risco. Por outro lado, há crianças que alcançam as dimensões de um adulto antes mesmo de serem consideradas legalmente adultos e ainda assim elas não têm direito a uma "exceção pelo tamanho".
É verdade, não pretendo negar, que há algumas crianças, e quanto mais jovens mais se verifica, que não necessariamente entendem os conceitos e percepções da sexualidade que devam surgir no caso da interação sexual com um adulto. Mas não é esse o caso: há algumas crianças, e quanto mais jovens mais se verifica, que não necessariamente entendem muitas das coisas que fazem (e aqui me refiro a coisas com as quais qualquer pessoa concordaria serem perfeitamente benéficas). Será que entendem a nutrição? Provavelmente não, especialmente, não no nível que os adultos normalmente entendem - e ainda assim elas entendem quando estão com fome e quando comeram e estão satisfeitas. Será que entendem alguma coisa de eletroencefalografia? Bem, elas entendem quando estão cansadas e querem dormir e mais tarde quando já dormiram e se sentem cheias de energia. E os processos digestivo e sangüíneo, elas os compreende? Elas entendem quando precisam usar o banheiro, mesmo antes que adquirem a habilidade de controlar o processo conscientemente, e elas entendem quando se sentem aliviadas, depois.
Elas entendem aquilo tudo porque são necessidades físicas inerentes a todos os seres humanos. Do mesmo modo, elas entendem quando estão felizes e tristes, contentes e com raiva, seguras e amedrontadas, chateadas e empolgadas, quando precisam de seu próprio espaço e quando querem dividir, quando querem ficar sozinhas e quando querem contato. Esses são estados mentais e emocionais e necessidades que também são inerentes em todos os seres humanos. Não é necessário ser um doutor para entender essas necessidades, e quase que certamente é ingênuo acreditar que um número mágico faça com que você entenda quaisquer delas. Todos são sentimentos e necessidades humanos. E a sexualidade, juntamente com sua expressão, solitária ou acompanhada, não é diferente. É, fisica e emocionalmente, uma necessidade humana, do começo ao fim, e a provável falta de compreensão que alguém possa ter não pode servir de razão para bani-lo de sua personalidade, e de privá-lo de poder realizar suas necessidades físicas, mentais emocionais e espirituais. Ainda mais se isso é feito com base em uma moralidade discriminatória ou uma proteção mal conduzida.
É verdade, não pretendo negar, que existe o abuso sexual de crianças. Questiona-se apenas se as legislações que estabelecem idade de consentimento e leis correlatas estão realmente fazendo algo para resolver esse problema, ou mesmo se têm alguma possibilidade de fazer algo para resolver esse problema. Por definição, a estipulação de uma idade de consentimento não alcança situações efetivamente abusivas: elas explicitamente dizem a qualquer pessoa que se dê o trabalho de ler a lei, que "o consentimento dado por alguém com idade inferior ao Número Mágico não serve de nada perante a Justiça" (... ou seja, o consentimento dela vale tanto para a Justiça quanto para um estuprador!!!), e isso não muda em todos os países nos quais há algo parecido com a idade de consentimento. Ela não está combatendo qualquer abuso sexual, da mesma forma que uma legislação proibindo a pornografia consensual não evitaria a filmagem de estupros verdadeiros. Alegar que potenciais estupradores deixariam de cometer crimes pela simples existência da idade de consentimento não é mais que uma demonstração de legalismo extremo.
Se a existência de uma lei fosse suficiente por si só, não haveriam mais crimes. Se as penas, por si só, detivessem a criminalidade, tudo que deveríamos fazer é declarar a pena de morte para todos os crimes. Quando um estuprador decide violar a lei é porque ele acredita que não será punido, e se o for, acha que ainda assim vale a pena. Ninguém comete um crime sem antes ter pensado sobre isso, dessa forma, obviamente, as leis não podem fazer nada para proteger alguém de coisa alguma. Se realmente se deseja combater o abuso sexual de crianças, a elaboração de mais leis, e mais fortes, não vai ajudar em nada. E deveria ser evidente que isso também se aplica à elaboração de mais leis, mais fortes, punindo o que efetivamente nada têm que ver com abuso sexual de crianças.
A única coisa que funcionará é uma mudança nessa visão de que o molestador não será pego. E isso somente será possível educando-se a criança em relação ao seu corpo e sua sexualidade. Com certeza, o caminho correto não é o de rastrear alguém com GPS, mas sim, deixar claro ao abusador que não vale a pena agir, e isso somente será possível quando reconhecermos o valor total da criança como pessoa, o valor total da sexualidade como uma poderosa e enriquecedora forma de expressão pessoal, e tomando decisões claras, baseadas, não em belas e demagógicas palavras, mas, no fato que nós, como indivíduos e sociedades, consideramos injustificável qualquer forma de abuso sexual. E isso nunca poderá ser feito através do estabelecimento de idades de consentimento, nem com mentiras, nem com tabus.
Por outro lado, os legalistas de plantão criam uma falsa sensação de segurança em pais, crianças e educadores, dizendo-lhes que Esta Nova Lei e Essa Nova Pena vão garantir que o abuso sexual de crianças seja erradicado. Isso é mais criminoso que infringir a ficção de uma idade de consentimento.
E, é claro, é estúpido pensar que, subitamente, num Dia Mágico, você começa a estar totalmente pronto para decidir fazer sexo, quando no dia anterior você era totalmente incapaz disso.
E, é claro, é discriminatório fixar um limite, qualquer limite, para uma necessidade humana, a qualquer pessoa.
E, é claro, vender proteção, às custas da liberdade, é, no mínimo, uma fraude, uma extorsão idêntica à praticada pelas tão ultimamente comentadas milícias cariocas.
E, é claro, alheios à lei, desprezando-as, ou desafiando-as, "menores" desobedecem tais leis, em todos os países e sociedades, contradizendo seus opressores e provando que são humanos completos. Não importa o que todos os outros pensem, o que lhes faz sentir-se bem, para eles é certo; e se parece bom com um companheiro, será certo com esse companheiro; se parece bom com alguém mais novo, será com alguém mais novo; se parece bom com alguém mais velho, será com alguém mais velho; se parece bom com um adulto, será com um adulto; Se é preciso que seja escondido, ficará em segredo - as crianças não são burras e sabem o que seus pais, professores, sociedades, irão desaprovar se descobrirem. Se querem ter experiências sexuais e sabem que seus pais não ficariam felizes se soubessem, então farão o que for necessário, com o melhor de suas imaginações e possibilidades, para não serem descobertas. O tempo todo as crianças, todas elas, fazem coisas que seus pais desaprovam, e até mesmo que são ilegais para elas, e ainda assim não são descobertas, porque elas sabem como agir fora da vigilância da sociedade em geral.
E isso não é diferente com o sexo. E como ocorre com todas as possíveis atividades que, por desaprovação ou leis, precisam ser mantidas em segredo, as reações à descoberta fazem uma grande diferença tanto ao minimizar como ao amplificar os efeitos do ato e mesmo da descoberta. E nesse caso as leis adicionam mais fontes de estresse que não existiriam, não fossem essas mesmas leis. Como é que isso pode ser sinceramente considerado proteção às crianças?
Se proteção significa perda de direitos, necessidade de segredo, e imposição de estresse desnecessário, então eu ficaria grato em não ser protegido.

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