terça-feira, 30 de setembro de 2008

O Grande Jogo

Há uma incontável quantidade de lutas políticas nesse nosso mundo. Mas, qual delas é a luta mais essencial do século XXI? Alguns dizem que é a luta da cultura global ou globalizante contra as locais; ou das culturas locais frente ao pano de fundo do patrimônio comum mundial, cenário em que se enquadram o medo da ocidentalização e o nacionalismo exclusivista, separatista ou etnocêntrico.
Alguns também podem dizer que é a luta das grandes corporações contra o homem comum; ou a do país rico contra o país pobre. Outros, que é a do homem contra a mulher; da religião, do divino, contra a irreligião, o pecado, ou o demoníaco.
Alguns dizem que é a do terrorismo contra a paz, a liberdade e a democracia...
Na verdade está-se apenas prestando atenção a uma pequena fração do todo: o todo, que é caracterizado pelo crescimento do poder estatal contra cada um de nós cidadãos; em que cada uma daquelas lutas acima apontadas não são mais que pequenos peões num tabuleiro maior de xadrez. O mais notável nisso tudo é o fato de o poder do Estado jamais ter deixado de crescer, desde o alvorecer da história; e cresceu a taxas altíssimas, acompanhando a aceleração do progresso tecnológico. Infelizmente, o mesmo não ocorreu com a consciência da grande massa de cidadãos quanto aos perigos decorrentes, o que, do contrário, certamente significaria uma profunda rearrumação do tabuleiro numa espetacular batalha final.
Nenhuma das batalhas específicas é efetivamente clara, branco no preto. Tanto por razões pragmáticas quanto de princípios, ambos os personagens antagônicos mantém suas peças nos dois lados opostos do campo de batalha. É nesse quadro que se inserem os crimes universais do século XXI: pirataria, drogas, terrorismo (e guerrilha), e pedofilia, todos desempenhando um papel muito importante na maneira como esse jogo se desenvolve.
Esse gris é inegável quando analisarmos, por exemplo, o conflito entre as visões de mundo da cultura globalizante e as da cultura local: por vezes os Estados utilizam-se de tendências homogeneizantes com o fito de reforçar seu conhecimento e controle sobre os cidadãos; outras vezes porém, e com os mesmos objetivos, fazem exatamente o contrário, promovendo as culturas locais. O discurso quanto aos cidadãos vai assim variar, acompanhando os interesses que se deseje justificar: algumas vezes é sua exposição às tendências globais que os fará mais fortes, enquanto que em outras vezes é a defesa das particularidades locais o que vai dar o mesmo resultado.
Similarmente, há ocasiões em que as grandes corporações representam o último bastião de resistência contra um Estado todo-poderoso. Noutras, ambos estão em perfeito conluio, numa relação simbiótica. As pessoas comuns na sua luta contra o poder das empresas, às vezes precisam lutar contra o Estado que protege aquele poder, e às vezes são obrigadas dar mais poder ao Estado de modo que ele possa enfrentar o poder corporativo.
Da mesma forma, para proteger-se uns dos outros, os países ricos e pobres tentam aumentar seus poderes enquanto procuram diminuir o poder dos outros lançando mão de todas as armas disponíveis: os subsídios ao comércio e à produção, o controle dos transportes e da migração, as leis extraterritoriais, os lobbies sociais e ambientais financiando uma ampla gama de ONGs...
Tomando proveito dos movimentos de liberação sexual, os Estados puderam tornar-se mais fortes e mais influentes através da criação e da imposição de leis, não obstante esses movimentos terem atacado as próprias instituições estatais.
Outro exemplo, o da religião, que tem sido uma força a moderar e conter o poder dos Estados seculares, mas que também se presta a aumentar o poder dos Estados de orientação religiosa; a laicidade desempenha um papel diametralmente oposto: é promotora da autoridade dos Estados seculares e um freio aos religiosos.
Em todos os lugares, os ditames jurídicos têm trazido um conjunto de novas leis, regulamentos e práticas que ampliam o poder estatal e reduzem o âmbito de ação dos indivíduos, mas que também diminuem as possibilidades de ação dos governos, dando amparo às possibilidades dos cidadãos para lutarem, ao menos em algumas áreas.
A luta para espalhar a democracia pelo mundo certamente destruiu ou enfraqueceu alguns todo-poderosos regimes descontrolados de natureza não-democrática; ao mesmo tempo entretanto, fortaleceu outros: essa luta limita as possibilidades de ação de muitos Estados, mas deixa outros intocados e até mais fortes.
Todos os paradoxos acima, em seus diversos gris, de várias tonalidades e contradições, são unificados pelos grandes Crimes Universais da atualidade.
A razão pela qual a pirataria é um deles não é porque ela diminui os lucros dos produtores. Produtos de sucesso ainda são uma inigualável fonte de renda. Discos de platina não desapareceram e nunca desaparecerão já que a pirataria somente supera as vendas legalizadas de música, vídeo, software ou jogos onde o mercado legalizado é excessivamente caro ou ineficiente.
A pirataria tem a capacidade de apontar diretamente para um furo na habilidade estatal de controlar sua própria economia, um furo que a qualquer momento pode crescer.
Agora, as medidas contra a pirataria são perfeitas para o fortalecimento do controle estatal: novos padrões de venda, novos padrões de produção, e até mesmo novos padrões e métodos de rastreamento dos próprios produtos e consumidores, como ocorre com os dispositivos para proteção e garantia que ajudam a rastrear uma peça de software ou música "original". Não é de se admirar que se trate de um crime universal, e que essa luta goze de alta prioridade na agenda dos Estados.
As drogas são um exemplo quase que perfeito demais de como o Estado aumentou seu poder às custas do cidadão, ao despejar toneladas e toneladas de dinheiro proveniente dos impostos que pagamos, literalmente usando dinheiro bom para a criação do mal. É a luta contra um problema que foi causado por leis ruins de sociedades ruins. Um claro retrato de como o governo cria problemas, agindo em detrimento de cada cidadão: mais leis, mais dinheiro, mais poder de polícia, mais força policial, tudo isso só faz aumentar o poder estatal por conta de algo que nem mesmo existiria, não fosse o próprio governo. E tudo isso porque alguns cidadãos gostam de fumar ou de cheirar alguma coisa estranha que, é claro, alguns outros cidadão estão dispostos a fornecer por um preço justo. Um preço justo que seria mais barato e menos violento à sociedade como um todo, se não fosse pelo dedo do Estado. É curioso o fato que Pablo Escobar era um parlamentar antes de se tornar a cabeça mais cara do mundo.
Em que difere, na argumentação legal, a indústria de bebidas alcoólicas e, principalmente, do tabaco? Mas questionar é fazer apologia, é envolver-se e receber a pecha de criminoso: o cidadão prudente, nesse contexto, é aquele que se cala... e acredita!
Diz-se que o último bastião de produção honesta de drogas foi o Talibã, com sua reconquista de apoio ao cultivo de ópio. Mas então, o que mais se poderia esperar? Afinal de contas, temos o Crime Universal mais reconhecido atualmente: o terrorismo, não é mesmo?
O terrorismo é outra justificativa perfeita para tudo: desde a vigilância paranóica de aeroportos e viajantes, até a intromissão em todas as formas de comunicação, com poderes extraordinários de busca, apreensão, detenção e pseudo-julgamento. O terrorismo é o crime dos sonhos que poderia ter sido muito útil para justificar a Inquisição, Vlad, Hitler, Stalin, Saddam... Ele ultraja a todos; faz com que a maior parte das pessoas tenham medo o suficiente para que se esqueçam de tudo o mais na vida, e isso aumenta o apoio cego ao governo e aos seus métodos, qualquer que seja o governo e quaisquer que sejam esses métodos. Quem se opõe a essa onda é sempre suspeito de colaboração ou de apologia. E como atualmente o terrorismo é tido como uma afronta ao próprio Estado (muito embora a etimologia clame pelo contrário), ele também é contrário ao status quo: assim, a luta contra o terrorismo é sempre uma luta pela manutenção do status quo. E como quem define o que é terrorismo é o próprio status quo, qualquer coisa e tudo pode ser terrorismo, e todo e qualquer assunto específico pode ser visto sob esse prisma. Que ditador não ficaria maravilhado?!
Mais uma vez, como Crime Universal, a pedofilia é muito adequada. Ela gera quase tanta indignação quanto o terrorismo, pelo menos naqueles setores chave de direita-conservadora-religiosa-hipócrita. Ela cria os mesmos tipos de reação que transforma cidadãos em joguetes dos ditadores através da filtragem e manipulação de informações e de fatos, resultando em mais buscas, mais apreensões, mais julgamentos corrompidos e menos direitos. Mais paranóia e dispositivos de rastreamento, mais leis cujo único propósito é o de minar, de enfraquecer os direitos civis. Como ocorre com o terrorismo, a ocorrência de uns poucos fatos verdadeiramente horrendos são o suficiente para que a histeria torne-se uma doença auto-destrutiva afetando quase a totalidade da sociedade, que reage de uma forma que nem resolve o problema e nem melhora nada, em absoluto.
Contrariamente a toda a propaganda vigente, as leis anti-pedofilia não resolvem nada. Elas não resolvem nada porque, comprovadamente, a maior parte dos casos de abuso não é cometido por pedófilos. Porque os casos de relação sexual consensual (não obstante ilegal) não estão causando dano algum às crianças. Porque todo dia, desde que a humanidade existe, mais e mais pedófilos estão nascendo e tomando consciência de sua orientação. Esses e outros fatores fazem com que todas as atuais leis anti-pedofilia sejam tanto inúteis quanto enganadoramente perigosas. Mas já era de se esperar...
Na realidade, guerras abrangendo tantos fronts diferentes não são para ser ganhas. De uma maneira peculiarmente mil-novecentos-e-oitenta-e-quatriana o inimigo é tão imane e impossível de submeter que a vitória, no final das contas, não é realmente possível. Não passa de ilusão - um tanto quanto conveniente.
Essas guerras são feitas para serem lutadas, lutadas, e lutadas, mas nunca vencidas. Não importa o que fizermos, sempre haverá coisas a serem pirateadas, tecnologia para fazê-lo e pessoas que comprarão produtos piratas; drogas para ser consumidas, consumidores ávidos, e produtores e distribuidores interessados; causas pelas quais se decida defender a todo custo e pessoas que se engajem no terrorismo para tentar alcançá-las; crianças cientes de sua sexualidade, pedófilos a admirá-las e oportunidades para que se encontrem.
Essas guerras são absolutamente não-vencíveis, mas são convenientes ao Estado. Povos mais esclarecidos perceberiam isso facilmente. Certamente, alguns indivíduos o percebem: quem sabe Pablo Escobar foi capaz de perceber isso tudo? Talvez alguns agricultores no Afeganistão também...
Por definição, guerras contra inimigos invisíveis não podem ser vencidas. Em todos os quatro casos citados o inimigo não é uma pessoa, um grupo, uma nação, um exército. Se fossem, haveria uma possibilidade de se vencer a guerra. Mas o inimigo não é uma entidade visível, mas sim um processo, uma decisão pessoal, um ato, um sentimento. Nenhuma dessas guerras tem um rosto contra o qual se lute; em nenhuma delas se está a encarar um general inimigo. Lutar contra Hitler foi fácil, relativamente falando, mas a luta contra o nazismo não está realmente acabada. Lutar contra Napoleão também foi relativamente fácil, mas no final a Revolução Francesa venceu. Pablo Escobar está morto, mais cedo ou mais tarde será Osama e todos aqueles que orgulhosamente estejam à frente, desafiando o status quo; mas mesmo que todos eles morram em ação militar e percam a batalha, a guerra prosseguirá. Para sempre. Porque aqueles rostos são ilusões; o verdadeiro inimigo é invisível, e o invisível nunca perde...
O triste é que as pessoas não questionam: só acreditam... são cegadas. Esta é a triste falha do sistema de governo guiado ou inspirado pelo povo, mas que sustenta idéias muito convenientes... convenientes demais para serem simplesmente questionadas.
Permitir ao povo escolher seus governantes e as políticas a serem adotadas pelo governo é, realmente, correto. É uma questão de pura justiça ser governado por alguém que recebeu seu consentimento para tal. É o lógico. O problema está em como isso se traduz na vida real, já que teoria e vida real tendem a divergir entre si de maneira curiosa.
As grandes dimensões atingidas pelas modernas unidades políticas tornou impossível à grande maioria dos cidadãos efetivamente conhecer a imensa lista de coisas que cada órgão governamental faz. Tornou-se impraticável aos cidadãos saberem tudo o que seu governo faz. Pode ser até que toda essa informação esteja disponível nos canais de comunicação estabelecidos pelo próprio governo, pelo menos em alguns países. Entretanto, isso não significa que cada cidadão disponha de tempo suficiente para analisar e tomar ciência disso tudo. Então, será que realmente se governa com o consentimento dos governados?
Isso nos trás um segundo problema: se a desinformação prevalece, a informação falsa é facilmente criada. E na quantidade certa, no tom apropriado, todos os press releases, eventos e discursos vão garantir que as omissões do imperador continuem omitidas, a não ser que, e até que, alguém as mencione.
Será que a sociedade tem condições de invocar o nome "democracia" quando, na realidade, a quase totalidade de seus cidadãos não tem o mínimo conhecimento do que seus governantes estão a fazer?

Nenhum comentário: